quarta-feira, 29 de julho de 2020

A Taça Sombria

Tomo I - A Taça Sombria

Desperto. Não há nada. Ou tudo que há é o nada. Tento enxergar algo. Mas tudo que vejo é a mais profunda escuridão. Estarei cego? – penso. Também não há sons. Meu corpo não toca nada. Não sinto nada. Pareço flutuar, ou teria me transformado num recipiente transdérmico? São segundos que parecem milênios ou o tempo aqui é incomum? De repente uma grande e tenebrosa agonia preenche minha consciência.

Sou apenas isso – uma consciência. Uma memória cortante.

- Sim! Aquela maldita criatura insignificante acabou comigo, com minha vida e...não...não...Astaroth?

Grito. Grito sem parar. Grito como se meu verbo pudesse tornar-se uma adaga voadora que invadiria a casa, o quarto, os tecidos, a pele e por fim aquele coração quente e pulsante. E o rasgasse por completo e a sua dor pudesse me trazer de volta o meu riso. Abriria sua garganta lentamente, e de seus vapores internos surgiria o meu gozo.

- Maldita, mil vezes maldita guerreira oriental! Como ousou acabar com tudo que construí? Acabar com...com nosso amor...minha deusa...minha deusa também morreu? Mas deuses não podem morrer. Não podem!

Minhas lembranças magneticamente dominam o ambiente. Elas fluem e se adequam. Se transformam, como papéis de parede. Agora há um local em que estou. Ele parece vivo e alimentado pelo meu ódio.

Todas as cenas, tudo que vivi, surgem de todos os cantos. Começo a sentir que novamente possuo um corpo. Disforme, febril, volátil. Mas a dor retorna, sempre, de tempos em tempos. A espada Sai ainda está fincada nas minhas costas. Ela entra e sai como uma melodia infernal. Ela ri de mim! Como ousa?

De minha boca jorram fluidos sanguinolentos, pantanosos, fétidos. Uma taça obscura se materializa diante dos meus olhos. Ela suga meu vômito como um buraco negro. Engole incessantemente as minhas angústias mais profundas. E eu a alimento com todo meu ódio.

Ouço uma voz ao fundo...não posso entender o que diz...parece estar me chamando...mas...não compreendo...

Aos poucos minhas recordações se tornam mais claras. Elas se materializam à minha volta como se eu estivesse numa dimensão de sonhos. Estão por todos os lados, passam acima, abaixo, me cobrem e me cortam. São delirantes, mas sei que são reais! Eu vivi isso! Eu...eu me lembro...eu a beijei, senti seu corpo quente, seus belos seios em minha boca, nas minhas mãos...é ela! Astaroth...Astaroth...sinto o calor do seu corpo, o prazer que ele me dá, sua língua, sua buceta molhada me engolindo. Ahhhhhh minha deusa!

Mas ela grita! Um grito que queima meus ouvidos...trinca meu cérebro, dor dor dor...Nao! Ela foi levada de mim! Ela precisa de mim, me chama! Mas sou incapaz de defendê-la...meu amor...o que fizeram com você? Onde você está?

Silêncio.

Tudo volta a ficar no mais íntimo escuro. As visões cessam. O que será de mim? – questiono.

Ouço novamente a voz das palavras indecifráveis. Agora consigo entender algumas pausas...e chiados que se repetem ”...ichi hahhah munohss vifca rong ri ananoz...”. Isso é...uma língua. Uma frase numa língua desconhecida. Mas o que significa?

o...o conhecimento...o conhecimento está...dentro...não...em você...o conhecimento está em você, basta...que se...não, basta recordá-lo. Eu sei! Eu sei que é isso! “O conhecimento está em você, basta recordá-lo” – eu sei que é isso.

A voz vem de dentro. Vem da taça obscura. Eu vejo. Sim, eu posso ver. Ela mostra um passado tão distante e ao mesmo tempo tão familiar. Numa terra entre rios, vejo exércitos tão grandes que não parecem ter fim. A lua crescente marca o chão e as águas. Ela é extremamente poderosa e todos se ajoelham. Sua luz é pura radiação de energias místicas. Alimenta o fogo, pois é vermelha como ele. Ao centro de uma formação rochosa incomum, estão homens e mulheres vestidos de forma diferente. Minha visão chega cada vez mais próxima daquelas pessoas. São todos adoradores. Dizem repetidas palavras em sua língua esquecida...os verbos ganham vida! As mulheres clamam, choram, riem, num transe sensorial, despem-se dos poucos panos e tiras de couro que mantinham seus corpos escondidos. São as mais belas mulheres de todas as tribos conquistadas pelo império. Os homens, sacerdotes, também entram em transe. Dizem palavras, cantam, entonam encantamentos, encontram parceiras nas sacerdotisas sedentas. O ar fica mais quente, a luz mais forte. Elas e eles formam símbolos com seus corpos enquanto praticam sexo. Todo o tipo de sexo.

Percebo que somente um deles está em posição de clemência e respeito. Ajoelhado, as palmas das mãos cobrindo o rosto, com os dois joelhos fincados na pedra.

Aquela mesma taça obscura está em sua frente, porém, incandescente parece estar viva! O homem chora sangue. Ele se levanta. Deixa as mãos caírem ao lado do corpo. Vira-se e quando o vejo de frente, tenho um assombroso assalto nos sentidos – ele, sou eu.

Sou o rei Sulgi, filho de Ur-Namu – o fundador da terceira dinastia de Ur. Senhor absoluto das cidades sumérias. Rei dos acadianos, assírios e babilônicos. Imperador do vale do crescente fértil conhecido como mesopotâmia. Protetor das vidas que brotam do Nilo, Tigre, Eufrates e Jordão. Eu sou o poder encarnado. Eu sou um deus na Terra.

De minha boca vejo surgir um poema, uma oração:

Eu, o Rei, sou um guerreiro desde o ventre (da minha mãe)

Eu, Sulgi, homem poderoso desde o (o dia do) meu nascimento

Sou um leão de olhos ferozes nascido de um dragão

Sou o Rei dos quatro cantos (do universo)

Sou o pastor dos cabeças-negras (dos homens)

Sou digno de confiança, o deus de todos os países, [...]

Sou aquele que foi abençoado por Enlil

Sou Sulgi, sou o bem amado de Ninlil

Sou sinceramente querido por Nintu

Recebi o dom da sabedoria de Enqui

Sou o poderoso rei de Nana

Sou o leão com as mandíbulas abertas de Utu

Sou Sulgi, escolhido para amar Inana

———
(Glorificação do soberano: hino ao rei Sulgi).
[39][40])

 

E então, da luz da lua vermelha vejo se materializar um corpo. Ganha suas formas aos poucos. É uma mulher. A mais bela mulher já vista naquele mundo. Somente seus verdadeiros obedes – servos – conseguem vê-la e não tornarem-se cegos por completo, diante de tamanha maravilha.

Ela é a personificação de uma deusa de muitos nomes, de muitas eras. Muitos povos a adoraram. Seus atributos são amor, erotismo, fecundidade, fertilidade...

Ela é Inana para aquele rei, Sulgi. Mas também é conhecida por Istar, Astarte, e no ocidente por Afrodite...

Para mim, é a minha eterna Astaroth.

Fim Tomo I


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