Tomo I - A Taça Sombria
Desperto. Não há nada.
Ou tudo que há é o nada. Tento enxergar algo. Mas tudo que vejo é a mais
profunda escuridão. Estarei cego? – penso. Também não há sons. Meu corpo não
toca nada. Não sinto nada. Pareço flutuar, ou teria me transformado num
recipiente transdérmico? São segundos que parecem milênios ou o tempo aqui é
incomum? De repente uma grande e tenebrosa agonia preenche minha consciência.
Sou apenas isso – uma
consciência. Uma memória cortante.
- Sim! Aquela maldita
criatura insignificante acabou comigo, com minha vida e...não...não...Astaroth?
Grito. Grito sem parar.
Grito como se meu verbo pudesse tornar-se uma adaga voadora que invadiria a
casa, o quarto, os tecidos, a pele e por fim aquele coração quente e pulsante. E
o rasgasse por completo e a sua dor pudesse me trazer de volta o meu riso.
Abriria sua garganta lentamente, e de seus vapores internos surgiria o meu
gozo.
- Maldita, mil vezes
maldita guerreira oriental! Como ousou acabar com tudo que construí? Acabar com...com
nosso amor...minha deusa...minha deusa também morreu? Mas deuses não podem
morrer. Não podem!
Minhas lembranças
magneticamente dominam o ambiente. Elas fluem e se adequam. Se transformam,
como papéis de parede. Agora há um local em que estou. Ele parece vivo e
alimentado pelo meu ódio.
Todas as cenas, tudo que
vivi, surgem de todos os cantos. Começo a sentir que novamente possuo um corpo.
Disforme, febril, volátil. Mas a dor retorna, sempre, de tempos em tempos. A
espada Sai ainda está fincada nas minhas costas. Ela entra e sai como uma
melodia infernal. Ela ri de mim! Como ousa?
De minha boca jorram
fluidos sanguinolentos, pantanosos, fétidos. Uma taça obscura se materializa
diante dos meus olhos. Ela suga meu vômito como um buraco negro. Engole incessantemente
as minhas angústias mais profundas. E eu a alimento com todo meu ódio.
Ouço uma voz ao
fundo...não posso entender o que diz...parece estar me chamando...mas...não
compreendo...
Aos poucos minhas
recordações se tornam mais claras. Elas se materializam à minha volta como se
eu estivesse numa dimensão de sonhos. Estão por todos os lados, passam acima,
abaixo, me cobrem e me cortam. São delirantes, mas sei que são reais! Eu vivi
isso! Eu...eu me lembro...eu a beijei, senti seu corpo quente, seus belos seios
em minha boca, nas minhas mãos...é ela! Astaroth...Astaroth...sinto o calor do
seu corpo, o prazer que ele me dá, sua língua, sua buceta molhada me engolindo.
Ahhhhhh minha deusa!
Mas ela grita! Um grito
que queima meus ouvidos...trinca meu cérebro, dor dor dor...Nao! Ela foi levada
de mim! Ela precisa de mim, me chama! Mas sou incapaz de defendê-la...meu
amor...o que fizeram com você? Onde você está?
Silêncio.
Tudo volta a ficar no
mais íntimo escuro. As visões cessam. O que será de mim? – questiono.
Ouço novamente a voz das
palavras indecifráveis. Agora consigo entender algumas pausas...e chiados que
se repetem ”...ichi hahhah munohss vifca rong ri ananoz...”. Isso é...uma
língua. Uma frase numa língua desconhecida. Mas o que significa?
o...o conhecimento...o
conhecimento está...dentro...não...em você...o conhecimento está em você,
basta...que se...não, basta recordá-lo. Eu sei! Eu sei que é isso! “O
conhecimento está em você, basta recordá-lo” – eu sei que é isso.
A voz vem de dentro. Vem
da taça obscura. Eu vejo. Sim, eu posso ver. Ela mostra um passado tão distante
e ao mesmo tempo tão familiar. Numa terra entre rios, vejo exércitos tão
grandes que não parecem ter fim. A lua crescente marca o chão e as águas. Ela é
extremamente poderosa e todos se ajoelham. Sua luz é pura radiação de energias
místicas. Alimenta o fogo, pois é vermelha como ele. Ao centro de uma formação
rochosa incomum, estão homens e mulheres vestidos de forma diferente. Minha
visão chega cada vez mais próxima daquelas pessoas. São todos adoradores. Dizem
repetidas palavras em sua língua esquecida...os verbos ganham vida! As mulheres
clamam, choram, riem, num transe sensorial, despem-se dos poucos panos e tiras
de couro que mantinham seus corpos escondidos. São as mais belas mulheres de
todas as tribos conquistadas pelo império. Os homens, sacerdotes, também entram
em transe. Dizem palavras, cantam, entonam encantamentos, encontram parceiras
nas sacerdotisas sedentas. O ar fica mais quente, a luz mais forte. Elas e eles
formam símbolos com seus corpos enquanto praticam sexo. Todo o tipo de sexo.
Percebo que somente um
deles está em posição de clemência e respeito. Ajoelhado, as palmas das mãos
cobrindo o rosto, com os dois joelhos fincados na pedra.
Aquela mesma taça
obscura está em sua frente, porém, incandescente parece estar viva! O homem chora
sangue. Ele se levanta. Deixa as mãos caírem ao lado do corpo. Vira-se e quando
o vejo de frente, tenho um assombroso assalto nos sentidos – ele, sou eu.
Sou o rei Sulgi, filho
de Ur-Namu – o fundador da terceira dinastia de Ur. Senhor absoluto das cidades
sumérias. Rei dos acadianos, assírios e babilônicos. Imperador do vale do
crescente fértil conhecido como mesopotâmia. Protetor das vidas que brotam do
Nilo, Tigre, Eufrates e Jordão. Eu sou o poder encarnado. Eu sou um deus na
Terra.
De minha boca vejo
surgir um poema, uma oração:
Eu, o Rei, sou um guerreiro desde o
ventre (da minha mãe)
Eu, Sulgi, homem poderoso desde o (o
dia do) meu nascimento
Sou um leão de olhos ferozes nascido
de um dragão
Sou o Rei dos quatro cantos (do
universo)
Sou o pastor dos cabeças-negras (dos
homens)
Sou digno de confiança, o deus de
todos os países, [...]
Sou aquele que foi abençoado
por Enlil
Sou Sulgi, sou o bem amado de Ninlil
Sou sinceramente querido por Nintu
Recebi o dom da sabedoria de Enqui
Sou o poderoso rei de Nana
Sou o leão com as mandíbulas abertas
de Utu
Sou Sulgi, escolhido para amar Inana
———
(Glorificação do soberano: hino ao rei Sulgi).[39][40])
E então, da luz da lua vermelha
vejo se materializar um corpo. Ganha suas formas aos poucos. É uma mulher. A
mais bela mulher já vista naquele mundo. Somente seus verdadeiros obedes –
servos – conseguem vê-la e não tornarem-se cegos por completo, diante de
tamanha maravilha.
Ela é a personificação de uma
deusa de muitos nomes, de muitas eras. Muitos povos a adoraram. Seus atributos
são amor, erotismo, fecundidade, fertilidade...
Ela é Inana para aquele rei,
Sulgi. Mas também é conhecida por Istar, Astarte, e no ocidente por Afrodite...
Para mim, é a minha eterna
Astaroth.
Fim Tomo I
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