quinta-feira, 2 de agosto de 2018

- não. tinha se despedido.

- hoje vou lhe contar uma história que aconteceu, mas ainda estou nela. Às vezes penso que nem sei se é verdade, ou se já morri, enlouqueci ou apenas é mais uma prerrogativa de que talvez nem exista.
- você, de vez em quando, acha que não existe?
- de vez em quando sim.
- mas e aí?
- a exatamente um ano eu recebia o telefonema da minha irmã dizendo que nossa mãe fora internada na noite anterior e que estava mal
- te pegou de surpresa?
- não, eu já esperava, eu já sentia
- você sabia que ela estava doente e era uma questão de tempo
- ela estava muito doente. Acho que todos sabiam que ela não teria volta...bem, como moramos numa cidade vizinha, imediatamente minha mulher e eu nos arrumamos, entramos no carro e partimos. Estávamos sem um puto no bolso. Ela tinha um seguro desemprego para sacar e fomos ao banco. A fila estava horrorosa, não podíamos perder aquele tempo - talvez fosse tarde demais para minha mãe.
- vocês precisavam do dinheiro naquela hora e não tinham nada? como fizeram?
- a sorte foi que o carro tinha algum combustível. Pegamos a estradinha vicinal para fugir do maldito pedágio. Era um caminho um pouco mais longo e com chances de encontrarmos algum caminhão de cana trafegando a 20km/h por excesso de peso. Enfim, era a única opção sem a droga do dinheiro.
- e o tempo passando...
- e o tempo martelando minhas ideias - preciso ver minha mãe antes que ela parta! - Um verdadeiro filme passou na minha cabeça. Tudo que vivi nesses anos todos com minha mãe, agora escorregava pelos dedos feito água - você tenta desesperadamente segurá-la, mas a danada encontra todas as brechas da sua mão gorda e foge. 
- mas conseguiram chegar?
- sim, conseguimos. Não sei dizer exatamente quanto tempo levamos, mas foi rápido. Entrei no estacionamento do hospital e descobri que precisava pagar.
- mais essa? justo quando se está sem dinheiro!
- maldito capitalismo que suga até a alma dos desesperados!
- principalmente a alma dos desesperados!
- é! bem, saímos com o carro do estacionamento e encontramos uma vaga na rua. Ao entrar pela porta do pronto socorro o que se vê é a paisagem de sempre: duas recepcionistas frias, algumas pessoas gemendo de dor, outras sentadas à espera de quem é atendido, e, naquele dia exato, a minha família. Sempre há os que choram e os que se fecham. Os que tentam mostrar que não se importam com nada e os que realmente não se importam com nada. Na minha família não podia ser diferente.
- mas, você conseguiu chegar a tempo de falar com sua mãe?
- cheguei a tempo de poder entrar na emergência. Cheguei a tempo de vê-la com um cano em seu nariz, deitada e gemendo. Gemendo muito.
- puxa que triste.
- Seu olhar estava atento. Tentava inexplicavelmente me dizer algo. Os canos ou o estado avançado do maldito câncer não deixava. Mas eu entendi. Seus olhos me diziam: "a mãe ta indo fio! Não queria morrer e deixar você aqui, mas a mãe não aguenta mais. Se cuide, minha criança. A mãe te ama muito, viu?!"
- acho que vou chorar!
- hahaha...chore, faz bem à alma.
- que foda isso!
- eu precisava dizer algo a ela. eu disse: hei mãezinha, não se preocupe! estamos todos bem e vamos ficar bem. não se preocupe com nada. fique em paz, fique tranquila e apenas durma um pouco. não precisa lutar tanto contra o sono. relaxe! e fique em paz.
- e o que aconteceu?
- ela estava esperando por mim. estava esperando para falar comigo antes de fechar os olhos e nunca mais abri-los. eu peguei sua mão e passei na minha barba. Ela segurava firme na medida do possível. Ninguém sabia explicar como após tomar uma dose cavalar de morfina, para tanta dor que sentia,  ainda não tinha caído no mais profundo sono. Ela só estava me esperando. Aos poucos sua mãozinha foi soltando minha barba e se entregou a uma espécie de coma. Ficamos lá revezando para entrar e ficar um pouco com ela até que resolveram colocá-la num quarto. Depois veio uma coisa difícil.
- o que era mais difícil?
- na verdade era difícil mas foi resolvida facilmente.
- o que?
- quem iria passar a noite com ela.
- ninguém queria?
- não, não é isso. quando alguém, não me lembro ao certo quem, falou sobre o acompanhante que deveria passar a noite com ela, eu prontamente me ofereci e fui aceito. eu pensei: minhas irmãs estão cansadas, pois já cuidaram dela, meu irmão não tinha excelente saúde para essa missão...Mas na verdade, na verdade mesmo, essa missão era minha cara. eu é que devia passar as últimas horas velando suas últimas respirações. eu sentia isso. eu, alguns anos antes, quando criança, fui quem encontrou meu pai enfartado e praticamente morto. ele também me viu por último, então eu também tinha que auxiliar minha mãe nessa hora de transição.
- transição, você diz morrer?
- pode me chamar de otário, mas acredito em uma vida mais legal em algum lugar depois de morrer, fantasmas e tudo mais...
- hahaha...será mesmo?
- tenho certeza. mas naquela tarde eu fui pra casa da minha irmã, tomei um banho e me preparei para a longa noite. chegamos no hospital ao anoitecer. muitos parentes para visitá-la, ou pior, despedir-se dela. eu tive que esperar liberar uma vaga, porque não é permitido que mais de duas pessoas entrem no leito ao mesmo tempo. o toque de recolher era às 20h e só ficaria o acompanhante noturno. ao final das contas estávamos em 6 ao mesmo tempo no quarto, além da minha mãe. nessas horas não sei se é bom ou ruim estar no Brasil, mas aqui tudo pode, tudo se ajeita. 
- o jeitinho brasileiro, um eufemismo pra corrupção.
- pois é. mas não subornamos ninguém, foi pura falta de atenção na entrada mesmo. enfim, eram quase onze da noite quando todos foram embora. havia acabado a barulheira, a falação. enfim minha mãe e eu num silêncio rompido apenas por sua dificultosa respiração e de vez em quando um gemido. talvez ela estivesse querendo falar, talvez fosse a intensa dor em seus ossos tomados pela doença. eu não sei.
- o que você ficou fazendo lá?
- rezei, basicamente rezei o tempo todo.
- isso foi bom pra você e pra ela.
- sim, foi. mas alguns momentos foram aterrorizantes. a quebra da imagem que se tem de alguém que a vida toda teve seu mais profundo respeito, admiração, amor...minha mãe estava acabada. não demorou muito para a enfermeira vir dar alguns remédios no soro e...trocar sua fralda. sim, minha mãe estava usando fralda. pode imaginar o que significa isso para um filho?
- realmente deve ser dolorido ver um adulto que você ama usar fralda.
- aquela mulher que te carregou, te deu banho, te levou pra escola, te fez a melhor comida do mundo e o seu leite com chocolate, que limpou todas as suas sujeiras enquanto você andava de bicicleta por aí. aquela pessoa que fazia chover algum dinheirinho na sua carteira pro lanche na escola, ou que aparecia misteriosamente justo na hora do recreio com um belo cachorro quente na mão...
- puxa meu amigo, vou chorar novamente...
- é...eu continuei sendo seu filhinho ou o "fio" dela até o último instante de lucidez. mesmo depois de velho ela me ligava todos os dias me perguntando se eu estava bem e se tinha comido bem. tinha dias que me sentia um babaca que não havia crescido, mas nunca briguei com ela por isso. me sentia preso ainda em suas saias, mas não podia e nem queria magoá-la. 
- claro, ela só queria seu bem.
- bem até demais. mas numa das entradas da enfermeira eu saí na rua fumar um cigarro. vaguei pela abandonada noite de uma Tatuí deserta. tentei lembrar de lugares alegres, mas naquela circunstância só a escuridão avançada sobre mim. voltei correndo para o hospital. tentei dormir um pouco num sofázinho minúsculo. havia levado um livro espiritual, uns saquinhos de salgadinhos de milho e duas caixinhas de suco industrializado, aliás tudo era industrializado naquele lugar, inclusive a vida.
- conseguiu dormir?
- talvez meia hora. liguei a tv. estava passando um filme horrível, sobretudo para a ocasião, não sei o nome mas era com o Gianechini e a Paola Oliveira. o tempo todo da história eles ficam pelados num quarto de hotel falando merdas existenciais sobre a vida. sei lá.
- pulta vida, que bosta hein
- nem fale...mas o pior é que de madrugada os gemidos da minha mãe aumentaram de intensidade. chamei as enfermeiras algumas vezes para ver se o remédio não estava sem efeito. era morfina, como perderia o efeito? o fato é que ela estava sofrendo e isso me deixava puto, com o coração na mão. o que fazer? rezei novamente, mas parecia inútil.
- que aflição!
- ela estava suando, a testa estava franzida. aqueles tubos no nariz também deviam doer. meu Deus, o que eu faço?
- as enfermeiras não fizeram nada?
- fizeram o que estava ao alcance, creio. chamaram um rapaz para fazer um raio x. ele trouxe o aparelho até o quarto. tiveram que levantá-la para ajeitar sua posição e ela gemeu mais forte e mais alto. eu saí do quarto e entrei em desespero. no corredor do hospital você se sente dentro de uma nave espacial que está indo sabe-se lá pra onde, tendo que confiar em ETs de branco que a comandam e não te dizem exatamente nada que te tranquilize.
- coitada, deve ter sofrido!
- eles saíram e eu voltei ao quarto. suava mais. estava um cheiro azedo, senti um pouco de náusea por tudo aquilo: o cheiro, o lugar, minha mãe sofrendo e de fralda. e eu um inútil que não podia fazer absolutamente nada. 
- mas não se culpe, não tinha nada que você pudesse fazer
- eu sei. e eu também sabia naquela hora. mas mesmo assim a gente se sente imprestável, não há como fugir desse sentimento miserável.
- é.....eu entendo. 
- resolvi pegar meu livro de orações, fiz umas 4 ou 5. em voz alta. não tão alta, mas alta o suficiente para ela e Deus, ou quem quer que fosse me ajudar, me ouvir. e comecei a sentir uma energia muito forte naquele momento, uma força magnética, quente e pacífica, fluía de mim e da minha mãe. pulsava. comecei a chorar compulsivamente. eu dizia: você não sabe quanto eu te amo mãezinha! Deus, por favor exista! Por favor Exista Deus e leve minha mãe consigo! Que ela viva pra sempre com o Senhor, cuide dela para mim e que Vocês dois me esperem um dia. Que eu chegue logo aí ficar com Vocês! Por favor Deus, exista! e comecei a beijar sua testa suada e o cheiro azedo havia desaparecido, nosso amor em seu mais alto grau superou qualquer resistência física, qualquer conceito. Beijei sua testa com todo o amor que já senti em toda minha vida. estava eu também entregue ao cansaço daquele dia que começara cedo com fortes sensações. me libertei daquela triste realidade para entrar numa nova consciência de fé e de vida.
- meu Deus! e o que aconteceu?
- vi que ela não mais estava agitada. pairava uma paz sublime pela primeira vez desde que lá entrei. sua respiração cada vez mais devagar...bem devagar...pensei: meu Deus, será que ela se foi? saí correndo chamar a enfermeira. logo vieram. ouviram seus batimentos. mediram sua pressão, era 4x2. me olharam com solicitude. eu já havia entendido.
- ela tinha morrido?
- não. tinha se despedido.
- só isso.
- só. 

Espectros

minha cabeça pesa  10 mil litros de vertigens uma tonelada de aborrecimentos arquivados  vinte campos de futebol de fantasias um casamento, ...